Entrevista – Dinah Borges de Almeida

Durante duas horas entrevistamos uma grande personalidade da medicina brasileira. Educadora nata, em vários momentos encheu os olhos de lágrimas ao defender a excelência do ensino médico. Com a emoção que transpira em cada poro da sua pele, a professora dá um exemplo de garra e criatividade a todos os jovens médicos e estudantes do nosso Brasil. Você vai ler a sua entrevista na íntegra, de um só gole, emocionando a cada linha.

Participaram do bate papo com a Profa. Dinah Borges de Almeida, os seguintes colegas: Profa. Cecilia Magaldi, Prof. Augusto Cesar Montelli, Profa. Maria Fernanda Cordeiro Carvalho, Prof. Vitor Augusto Soares. Prof. Andre Luiz Balbi, Profa. Jacqueline Teixeira Caramori, Prof. Roberto Jorge da Silva Franco, Prof. Francisco Haberman, Prof. Pasqual Barretti e Profa. Inah Esteves Andreto

Dr. Sebastião: Ser mulher melhorou ou prejudicou a carreira da nefrologista?

Profa. Dinah Olha, recentemente Sebastião, eu vi no Opinião Nacional da TV Cultura duas professoras da USP que estavam discutindo exatamente essa questão. Essa questão é muito importante do ponto de vista da evolução do papel da mulher na sociedade, mas eu devo dizer pra você que nunca senti muita dificuldade nesse aspecto. Quer dizer,  em nenhum momento da minha trajetória, nem na faculdade, nem depois na residência, nem mesmo quando eu vim pra cá eu senti muita diferença nesse asperto. Não senti nenhuma dificuldade adicional pelo fato de ser mulher. As dificuldades foram inerentes ao momento em que passei a exercer as funÇões de nefrologista, a rigor   eu era clínica geral e me transformei em nefrologista em Botucatu. Até por uma questão de coerência, devo dizer que sou uma nefrologista com uma porção de pernas capengas  e  como você disse, que essa conversa é bem informal e que muitos estudantes de regioes diferentes do Brasil acessam a revistat, eu gostaria de salientar nesta entrevista, o que foi fundamental pra que o “sonho” desse certo aqui em Botucatu, pois no começo não tinha nada pra dar certo, não. Então porque foi que isso aqui deu certo? Gostaria de enfocar a nefrologia, mas, mais que a nefrologia eu gostaria de enfocar esta Faculdade, especificamente. Eu acho que esta Faculdade é vitoriosa, você me desculpe não ser modesta, não vou ser modesta aqui nesta entrevista, tá? (Todos concordam)  Acho que é uma Faculdade vitoriosa.

Dr. Sebastião: Nós vamos chegar lá, mas antes, quando a senhora chegou a Botucatu era a única médica aqui na época?

Profa. Dinah. Não, acontece o seguinte: a faculdade, quando começou, tinha várias professoras no básico, né, mas no ciclo profissionalizante não existiam muitas não. No ciclo profissionalizante, quando cheguei éramos apenas cinco professores na clínica médica. Juntando Clínica Médica e Cirurgia, que eram os únicos departamentos que existiam, eramos no máximo dez docentes. Quando nós começamos aqui eu era a única mulher, não… minto, já tinha havido uma   professora de Patologia, mas quando cheguei ela já tinha ido embora. Nós éramos dez, onze docentes no máximo e eu fui a primeira mulher aqui, no ciclo profissionalisante.

Dr. Sebastião: Isso foi quando?

Profa. Dinah: Isso foi em1966. Vim pra cá em fevereiro de 66, quando a Faculdade tinha 3 anos mas imediatamente fui pra Ribeirão Preto fazer um pouco de pesquisa e voltei em julho, no meio de uma crise violenta quando o Profesor Dutra e metade do pessoal foram embora, se dispersaram. Montelli e o Nelson que também eram da clínica médica, por questões filosóficas, resolveram que iam pra preventiva e acabamos ficando o Tiberê e eu . Ficamos apenas dois docentes na clínica médica.  Isso é o começo, não sei se você quer mais alguma coisa? ( NR: faço um SIM com a cabeça rapidinho) Eu tinha sido uma residente de uma faculdade das que melhor formam o seu pessoal.Tive a vantagem de ter tido uma formação muito boa, uma formação que fossemos ousados. A Faculdade de Medicina de Botucatu nasceu de uma porção de gente sonhadora proveniente da Universidade de São Paulo e que queria implantar uma faculdade diferente, parte deles acabou não ficando aqui, mas implantamos alguns princípios. Tínhamos que ser os melhores possíveis, tinhamos que ousar ao máximo, mas ao mesmo tempo reconhecer as nossas limitações da época. A Clínica Médica começou com as cabeças muito bem formadas dos professores Dutra de Oliveira e depois com o Professor Alvaro Oscar Campana que o substituiu, alguns meses depois e, na cirurgia, com o Professor Willian Saad Hosne. Com o Saad, politicamente brigamos muito no inicio, mas foi extremamente importante pra implantação da Faculdade. Na patologia tinhamos o professor Montenegro que foi a figura mais permanente e sólida que a faculdade teve e tem. Essas pessoas trouxeram alguns princípios que  incorporamos: a Faculdade pra dar certo tinha que ter pessoal em tempo integral e não tem outro jeito. Tivemos experiências imprenssionantes com professores famossísimos da Universidade de São Paulo ou da Escola Paulista de Medicina, que vinham dar cursos aqui no começo, gente da melhor qualidade, mas ficou absolutamente evidente que não criaríamos nada desse jeito, pois eram professores que vinham, davam a sua aula, mas não tinham o compromisso de implantar o núcleo. Eu quero caracterizar uma outra condição dessa escola. Essa escola é de rebeldes. Eu dizia o seguinte: “olha, tem que trazer a sua competência e a sua força, mas não pode ser autoritário” Essa escola tinha que ser muito particular com desafios peculiares. No Brasil,  dizem que   “tem de fazer a lição de casa” e, sabemos, de vez em quando tem gente que não faz lição de casa. Ouvimos a toda hora: não fez a lição de casa? Entao sofra as consequencias! Na realidade não acredito nisso, neste método. Nós temos que ter gente disposta, de vez em quando, a não fazer a lição de casa ou modificar a lição de casa! Na realidade essa faculdade veio pra modificar a lição e ela o fez em muitos sentidos. Nós éramos rebeldes por natureza, porque éramos jovens, mas  não tínhamos muita noção dessa característica, porém fundamental. Nós tínhamos algumas pessoas muito bem formadas que tinham uma cabeça muito boa, tinham uma experiência de pesquisa, pesquisa de ponta, por exemplo, o   Montenegro tinha trabalhado com os Professores Germuth e o Dickson nos Estados Unidos; mas não aceitavamos autoritarismo, um autoritarismo cerceia a criação coletiva única capaz de estimular e de superar as situações limites.

Dr. Sebastião: E o Hospital?

Profa. Dinah: No meu entender não existe essa história de hospital de ensino. Se você começar a dizer que tem hospital de ensino você está instrumentalizando o ser humano e ele não pode ser instrumentalizado. O hospital é de prestação de assistência e a gente utiliza-o pra ensino. As pessoas sempre querem instrumentalizar. No entanto, tudo interessa ao ensino, tudo! Interessa qualidade, interessa quantidade e interessa diversidade. Temos que permanentemente lutar pra estar dando uma assistência adequada e isso também foi muito claro aqui em Botucatu. Aqui tá a Cecília Magaldi que não me deixa mentir. Ela foi a principal batalhadora pra fazer desta cidade um modelo de sistema de saúde. Acho que Uberlândia é outra cidade que tem condição de implantar um sistema modelo, tem tudo pra ser isso, tem condição de fazer centro de saúde na periferia até centros rurais que dão um primeiro atendimento, prestar assistencia domiciliar, tem condições de montar hospitais secundários e   terciários (NR: Sebastião fica animadissimo com a referência).

Dr. Sebastião: Mas sobre a vinda pra Botucatu….

Profa. Dinah: A minha?

Dr. Sebastião: Sim…a sua vontade…como surgiu a idéia?

Profa.Dinah: Aconteceu o seguinte: eu era uma uspiana, uma pessoa com formação na USP,  tinha sido residente de um grande professor que morreu no final do ano passado – Prof. Ulhôa Cintra, que teve importância fundamental pra essa faculdade. Como secretario da educação, foi um dos grandes responsáveis pela implantação da faculdade, foi um esteio, um esteio um pouco diferente. Ele era diferente pois dava suporte e te jogava a bucha e ela tinha que ser sua. Eu tinha sido residente dele, mas como tinha a vida inteira estudado longe da minha família, a minha aspiração era voltar pra junto dela e acabei retornando. A minha família morava em Araçatuba e não só morei como exerci medicina lá. Gostei muito de exercer medicina lá, mas faltava alguma coisa. Antes de sair da USP, o Montenegro já   tinha me convidado pra vir pra cá, e eu falei: “mas vou pra Araçatuba!” e, quando percebi que Araçatuba não conseguia preencher toda minha aspiração universitária, lembrei do Montenegro e vim procurá-lo aqui. Aí ele me encaminhou para o Professor Dutra que era o responsável pela clínica e eu vim pra cá. Não tive dúvida. Mas quem chegava em Botucatu, naquela época, podia ter muita dúvida, porque era uma cidadezinha horrorosa, quer dizer, apesar de toda…(NR: Risos gerais)

Dr. Sebastião: Isso vai sair! (NR: Risos gerais)

Prof. Dinah: Pode sair!! (rindo). Era uma cidade que tinha tido seu auge no comecinho do século. Era uma cidade importante, tinha um dos primeiros bispados do interior pra mostrar. Era uma cidade reconhecidamente de boas escolas, mas tinha entrado numa decadência assustadora! Tinha uma rua central  que, “hoje” as pequenas vilas do interior tem uma rua central melhor que aquilo. Era uma cidade meio apavorante mesmo! Para a Faculdade tinha somente um enorme prédio construído e desativado. Cheguei na cidade onde conhecia apenas o Montenegro. O Montenegro tinha sido meu professor, um dos professores mais jovens que eu tinha tido, extremamente dinâmico,   admirado e quando precisávamos falar sobre ensino a gente recorria a ele, além da parte de anatomia patológica. Encontrei o professor Dutra também muito entusiasmado e moderno. Quando cheguei, eles já tinham dado o primeiro curso de semiologia e tinha sido um curso extremamente revolucionário, muito bem avaliado! Os alunos daqui  eram fantásticos e lutavam por isso. Você percebia que eles lutavam… então, essa escola foi construída pelos professores, pelos alunos e pelos funcionários! Foi uma faculdade construída pelo conjunto. As minhas pesquisas foram os alunos que fizeram!  Aqui nós montamos a primeira dieta de Giovanetti modificada!… Eu me lembro de uma aluna do quinto ano, correndo atrás de uma fábrica de máscaras pois tinha tido um paciente   intoxicado por agrotóxicos… Os alunos se envolviam inteiramente nos atendimentos que eles davam,  foram precocemente colocados em contato com os doentes e com responsabilidade total. Tinham que vir sábado e domingo, o ano inteiro! No quinto ano faziam diálise peritoneal e não tinha enfermeira pra fazer. Era aluno que fazia tudo! E vou te contar uma coisa:  tem nefrologista aqui que aprendeu e se encantou com nefrologia porque fez diálise como quintanista e como residente de clínica médica. Os alunos entraram direto em tudo! Incentivavamos dizendo que todo mundo era capaz de fazer sua parte e a parte, as vezes, começa pequena e vai crescendo e se implanta lentamente. Todos esses que estão aqui (NR: referindo aos seus ex alunos presentes), fizeram pesquisa, pesquisaram como alunos. Como residentes davam aula, davam aula sim! Eu me lembro, por exemplo, que o Vítor perdeu o trabalho de infecção urinária que fez, daí o Franco foi ao Congresso em Curitiba e o grupo apresentou  trabalhos feitos por alunos e residentes!

Dr. Sebastião: E eram estudantes!

Profa. Dinah: Estudantes e no máximo residentes e, as vezes, residentes de outra especialidade. Você pega os primeiros trabalhos nossos tinha o residente que hoje é clínico geral, cardiologista, da saúde pública, etc. Porque não tem fronteiras…medicina é muito maior… desculpe estou falando demais…(NR: um NÃO coletivo foi ouvido)
Professora Dinah observada ao fundo pelo Professor Montelle

Dr. Vítor: Eu queria voltar um pouco dentro da pergunta do Tião. Você falou que a cidade assustava, agora chegar numa faculdade há oito Km da cidade sem uma pista asfaltada…., muito assustador mesmo, eu queria que você comentasse mais.

Profa. Dinah: O que era assustador é que o prédio da Faculdade era enorme, mas o mais assustador é que não tinha absolutamente nada dentro a não ser morcegos! Mas os alunos pegavam as crises e as transformavam, assim como os docentes também não se deixavam vencer pela crise. É uma história de luta, é uma faculdade que tem uma história de luta, lutou e acho que vai continuar lutando eternamente.Os alunos chegaram a invadir a faculdade e a observar se chegavam as forças da repressão com binóculo lá de cima da caixa d’água, eles ficavam lá de binóculo vendo se chegava a polícia e um dia chegou mesmo!

Dr. Montelli: Como a única pessoa aqui da mesa que não é nefrologista, eu queria dizer da minha satisfação de estar aqui hoje, de ter sido convidado para participar da entrevista. A Dinah é muito mais que uma nefrologista pra nós. A Dinah passou a lutar na montagem da disciplina, do departamento e da própria Instituição. Não sei se vocês lembram, mas houve alguma coisa em 1964, nesse país, que o mudou bastante. A Dinah teve uma outra frente de luta aqui, junto conosco, que foi a luta pela redemocratização do país. De modo que a Dinah é especial pra nós. Ela foi responsável pela disciplina, chefe do departamento, diretora da faculdade, mas, muito mais que isso, ela foi uma cidadã consciente que sempre teve uma participação extremamente fundamental pro desenvolvimento da Instituição e de nós todos. Algumas pessoas podem acessar sua revista e acharem apenas que se está entrevistando uma nefrologista…mas a Dinah é muito mais que isso. Gostaria que você falasse um pouco a respeito das etapas de redemocratização pela qual a gente passou e  nas quais você teve uma participação extremamente importante e do inicio da nossa da Faculdade.

Profa. Dinah: Um grupo da Universidade de Sào Paulo e o governo do Estado queriam criar um núcleo universitário no interior do estado várias cidades  se candidataram: Araçatuba, Araraquara, Campinas, Botucatu, todas lutando pelo núcleo e Botucatu era a última cidade com possibilidade de te-lo. As outras eram todas cidades em franca expansão, enquanto que Botucatu era uma cidade meio morta, economicamente falando. Mas tinha uma liderança política fantástica e um prefeito que sabia fazer política. O prefeito conseguiu,  articular de tal forma que, quando ele percebeu que ia sair em Campinas,  interferiu para que o estado fizesse duas. O núcleo de Botucatu nasceu junto com o núcleo da UNICAMP, só que aqui não nasceu como Universidade, nasceu como uma Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu ( FCMBB). Com uma estrutura extremamente precária, foi muito tumultuada no começo. Os médicos da cidade queriam fazer parte da Faculdade mas eles não tinham condições de serem docentes, e isso aí implicou numa luta grande. A Faculdade tinha que ser parte fundamental da vida de cada um, ela não podia ser periférica, precisava ser fundamental e tinha que ter docentes em tempo integral. As pessoas precisavam se integrar inteiramente a ela, porque se não fosse assim, ela não vingaria. Além disso, precisava ter uma preocupação muito forte na implantação de uma assistência, a melhor possível, um ensino mais avançado que pudesse ser dado e, era fundamental, que nascesse fazendo pesquisa. Evidentemente, nós não tínhamos condições de aspirar, a fazer pesquisa igual a Haward, mas tinhamos que implantar o princípio da pesquisa. No começo era tudo uma coisa só: os veterinários, os biólogos,etc. Se a gente for pegar algumas das pesquisas que fizemos no começo, por exemplo, elas nasceram de conversas de corredor que não sairam exclusivamente da clínica médica, mas sim da nutrição, da saúde pública etc.  Era uma interelação.  Na realidade, as fronteiras são só organizativas e quanto menos fronteiras tiver, melhor!

Dr. Sebastião: E a respeito da redemocratização?

Profa. Dinah: Eu digo pra você que era uma faculdade rebelde. O docente era rebelde, vindo de ostes rebeldes das outras instituições…

Dr. Sebastião: Rebelde no bom sentido… (rindo)

Profa. Dinah: Rebelde no bom sentido…(sorrindo). Nem sempre o que está sendo dito é o que tem que ser feito. Nós implantamos essa história e os alunos eram plenamente ativos, lutavam pela faculdade, o que pressupunha lutar contra a situação vigente. Se não havia jeito para as coisas, íamos à luta. Não tem jeito? Tem sim! E nós vamos todos mostrar que, se vocês não mexerem, a gente mexe com vocês! Os alunos fizeram coisas dessa natureza e ficaram famosos com a Operação Andarilho.

Dr. Sebastião: Operação o que?

Profa. Dinah: Operação Andarilho! Tinha um enorme prédio construído pra 1.200 doentes, quer dizer, um prédio enorme completamente vazio e sem nenhum equipamento dentro. Só que os equipamentos existiam mas estavam presos por questões burocráticas alfandegárias. Retidos há mais de um ano na alfândega e o governo não se mexia, o diretor daqui tambem não e então, os alunos se puseram em campo e fizeram a Operação Andarilho:  foram a pé daqui até São Paulo, falar com o Governador. O Vítor (NR: Vitor Soares) estava no segundo ano, o Chico (NR: Haberman) era das primeiras turmas…

Dr. Vítor: Um grupo de alunos montou a infra-estrutura de barracas, outro montou a cozinha e outro foi pra veículos. A gente saía daqui, lembrando a voces que à época não tinha a rodovia Castelo Branco e íamos por outra estrada. Daqui até Jundiaí, paravamos nas cidades, atravessavamos as cidades a pé, em passeata, e nas saídas das cidades pegávamos carros, caminhão, ônibus e íamos para outra até chegar em Jundiaí. Nós éramos uns 400. Tinha lista de presença, quem não ia, assinava e justificava! Chegando em São Paulo nós fomos recebidos pela cavalaria do Palácio do Governo. No Palácio do Governo, nós tivemos o grande prazer de receber cavalaria, cachorro, tropa de choque, tudo aquilo que o pessoal mais antigo conhece. Ficamos três meses acampados e aí o governador Sodré, o prefeito não lembro quem era, puseram três ou quatro chuveiros no nosso acampamento no Ibirapuera…

Dr. Sebastião: E onde é que estava a professora Dinah nisso tudo?

Profa. Dinah: Bom, eu estava aí no meio. Os docentes estavam inteiramente favoráveis aos alunos. Quando a gente fala dos docentes fala em 90% deles. O espírito da faculdade estava junto com os alunos. A gente dava, até certo ponto, uma retaguarda. A cidade dava retaguarda também. Em 68 foram presos vários alunos, inclusive o Vítor. Naquela época existia um entrosamento da cidade com a faculdade. Eu me lembro de que os alunos estavam fazendo passeata e nós estávamos junto a eles e, quando veio a tropa de choque, as casas abriaram as portas e puxaram os alunos para não serem presos. Os docentes foram depois no Dops prestar depoimentos e…

Dr. Vítor: Testemunharam inúmeras vezes na auditoria militar , de madrugada em São Paulo, inúmeras vezes…

Profa. Dinah: Eu adoraria ir lá no Dops e ver o que consta a meu respeito. (risos gerais)

Dr. Sebastião: Mas dizem que as fichas já estão abertas…

Profa. Dinah:  A pressão era violenta e durou muitos anos. Até na época do Maluf tivemos um sério episódio. Quando o Maluf, vários anos depois, veio aqui tentar faturar em cima de uma coisa que estava acontecendo, os alunos protestaram e a polícia dessa vez veio. Veio mesmo pra valer! Já tinha vindo outras vezes, mas dessa vez foi violento. Numa outra época, os alunos tomaram a sede do centro acadêmico que a diretoria havia fechado. O Pascoal estava junto, o Trajano, né, tudo isso. Essa é Faculdade da sublevassão brasileira!

Dr. Pasqual : Em 77 a repressão era muito violenta ainda. A gente não sentia tanto violência policial, mas violência de cerceamento de  idéias, de não se poder falar…Uma dúvida que eu tenho: logo no inicío da Faculdade você disse que 90% dos docentes estavam com os alunos e que o pensamento dos docentes era semelhante aos dos alunos. Passa-se o tempo e, nas outras lutas, já não tinhamos 90% dos docentes lá com a gente, ou seja já existia uma divisão tipo ou da direita ou da esquerda. Como é que se evoluiu pra isso? Eu não peguei essa época…

Profa. Dinah: A rigor a divisão esquerda e direita existiu desde o começo. A própria saída do Dutra foi, na realidade, a primeira crise da Faculdade. O Dutra, que era um professor de clínica médica, saiu por desentendimento com os outros professores, mais especificamente, com o professor Saad que era da cirurgia. Houve já, neste tempo, uma certa fragmentação de pensamento: um grupo achava que nós tínhamos que lutar por implantação de princípios muito sérios mas com muita liberdade: o princípio democrático e outro não. Nesse episódio do Maluf e a invasão da polícia, os alunos tomaram as salas de aula e ficaram deitados no corredor. Ficavam sentados lá e não havia cristão que tirasse eles de lá. Aí alguém soube que a tropa de choque vinha vindo e todos docentes foram avisados…. Certos episódios mostram o espírito da pessoa… como a Neusa por exemplo. A Neusa era uma pessoa ligada ao pessoal um pouquinho mais autoritário, etc..mas é uma grande docente e estávamos todos no anfiteatro com os alunos em baixo. Sabíamos que a polícia estava vindo de Sorocaba e que fora a própria   Diretoria da Faculdade que tinha chamado. O Reitor e o Diretor tinham chamado a polícia. Os alunos iam apanhar lá embaixo. Quando estavamos no meio discussão, a Neuza levantou-se e desceu a escada, justo ela que era aliada de quem chamou a polícia…mas. naquele momento a meninada ia apanhar, e ela não podia deixar a meninada apanhar…

Dr. Sebastião: Ela desceu e…

Profa. Dinah: Desceu e nós descemos juntos. Conseguimos convencer o resto que não queria descer. Os docentes desceram e fizeram um círculo em torno dos alunos. O Montelle teve uma participação importante nesse episódio pois foi receber a polícia que veio com os cacetetes, absolutamente tamanho família. O Montele, com esta jeito que só ele tem,  é que conseguiu convencer, amenizar a coisa…

Dr. Sebastião: A senhora já está aposentada?

Profa.Dinah: Eu estou aposentada.

Dr. Sebastião: Aposentada há quanto tempo?

Profa. Dinah: Sou aposentada há cinco anos.

Dr. Sebastião: Há cinco anos?

Profa. Dinah: Me aposentei em 94, 93…

Dr. Sebastião: Como é o seu dia-a-dia? Foi difícil desligar da faculdade?

Profa. Dinah: Olha, a questão da aposentadoria, não é uma coisa muito fácil não. Acho que, quem já passou por ela, sabe, né? Existem várias formas de se aposentar. Existe uma forma que foi adotada pela Cecília, professora de Saúde Pública- professora emérita da faculdade, que foi meio radical: saiu e pronto, encerrou o assunto! Agora eu saí e saí meio com o pé lá dentro, mas saí por uma série de circunstâncias de natureza pessoal, circunstância da disciplina -pois achei que seria útil pra disciplina e pra mim também. Naquele momento, eu precisava sair. Mas não foi fácil, não! Se tivesse ficado, eu teria ficado mais dois ou três anos, mas   tive que resolver problemas pessoais. Precisava ter liberdade para ficar me movimentando sem nenhuma limitação, coisa incompatível se continuasse em atividade. Tinha também de abrir espaço na disciplina…e, segundo,  eu tinha passado pela administração e você fica um pouco inseguro pois a administração aqui é muito pesada ( fica longe da reitoria, depende muito de São Paulo, você tem que se deslocar muito ). Não dá pra manter contato diário com atividade médica, científica e na disciplina. Eu não consegui manter esse contato permanente com a disciplina. Só consegui manter com os meus cursos de pos graduação. É uma coisa meio inviável

Dr. Sebastião: Por causa da direção da faculdade?

Profa. Dinah: Era importante abrir espaço. A universidade precisa muito de gente nova, é fundamental a renovação. Uma coisa que me preocupa: as Universidades estão fechando as contratações. Eu sou de uma escola que foi feita por gente jovem. Essa escola foi feita por auxiliares de ensino, foi feita por instrutores… não foi professor titular que fez essa escola, os jovens são muito necessários! Quando eu saí, fiquei um pouco ligada e  voltei a dar aulas de graduação igual aos meus colegas, dividia mais ou menos o mesmo tanto de grupos de graduação, os ambulatórios semanais, frequentava as reuniões de disciplina, participava com uma certa intensidade das reuniões, mas a medida que vai passando o tempo, você percebe que é uma situação meio artificial, ela não é natural… não é natural, você começa a sentir que não é natural, porque você começa a se questionar, se você está contribuindo… você fica se questionando se não está indo lá pra resolver um problema de natureza pessoal, entendeu? Precisa ponderar se isso aí tá sendo benéfico pro conjunto.

Dr. Sebastião: E a senhora percebeu que….

Profa. Dinah: Percebi que era parcialmente benéfico e portanto começou a me fazer mal, eu não estar totalmente inserida. Você não consegue mais se habituar com aquela situação de uma inserção parcial. Será que estou ajudando? Pode ser que eu não esteja ajudando, pode ser que esteja atrapalhando, entendeu? Todo mundo que veio pra cá, no começo, era uma inserção total, de sábado, domingo, de noite, de tudo!

Sebastião: Mergulhava mesmo!

Profa. Dinah: É tem que mergulhar. Faculdade pra mim é isso!

Dr. Sebastião: E isso, a senhora ficou nessa, por quanto tempo?

Profa. Dinah: Aí, devagarzinho, as atividades foram sendo reduzidas…

Dr. Sebastião: E hoje?

Profa. Dinah: Hoje nenhuma.

Dr. Sebastião: Mas qual que é o seu dia-a-dia hoje?

Profa. Dinah: Bom o que que eu faço?

Dr. Sebastião: A senhora acorda a que horas?

Profa. Dinah: Ah, é bem tarde (caindo na gargalhada)

Dr. Sebastião: Claro…Depende da noite anterior (rindo)

Profa. Dinah: Depende. (rindo)  Eu leio bastante. Os aposentados também têm uma boa vida, existe uma outra vida, que é muito boa também, você entendeu? Você pode ler o tanto que você quer, você não consegue ler tudo que você quer, você não consegue ouvir todos os discos que você quer, você não consegue ver todos programas de esporte que você quer e eu gosto de esporte, entendeu? Uma das minhas frustações é que eu nunca tinha visto um campeonato, nunca, nunca tinha podido assistir uma copa do mundo direito, nunca, nunca tinha assistido uma olimpíada direito, nunca, nunca tinha assistido um torneio de tenis direito, que eu adoro, então, quer dizer, hoje eu posso! Adoro ler, adoro!

Dra. Cecilia: Ela lê não só as revistas de nefrologia, que ainda vem pra cá, mas ela adora economia. Ela devora tudo que se publica sobre a situação econômica mundial,  gosta de história e gosta de polemizar politicamente Professora Dinah e, ao fundo, Professor Pascoal

Dr. Franco: Eu gostaria que a Dinah comentasse como é que surgiu a nefrologia, porque que realmente ela criou a disciplina e qual foi o princípio básico que motivou isso?

Profa. Dinah: Nesse aspecto, eu gostaria de dizer o quanto vocês foram importantes. Fiz a minha formação de clínica geral e aí fui pra Araçatuba. Fui clinicar, mas quando eu saí de lá, a Inah, que está aqui, falou: “olha, tem uma bolsa pra França e você pode escolher o que fazer”. Falei:   “bom eu vou fazer nefrologia” e pedimos a bolsa. De repente a bolsa saiu e foi uma coisa meio súbita entendeu? A bolsa que eu tinha pedido no término da minha residência saiu pra mim e saiu pra ela. Ela (Profa Inah) não sei o porquê desistiu e eu fui. Primeiro fui para Hospital Broussais, com o Professor Paul Milliez, pessoal que até trabalhava com hipertensão, mas o estágio lá não foi bom. O estágiario lá ficava como um expectador, é um tipo de estágio que não funciona em medicina. O estágio como expectador pra médico não funciona, todo mundo sabe. Então, quando terminou meu primeiro estágio, fui fazer um curso oficial, que naquele tempo se chamava Atualidades Nefrológicas, no Hospital Necker com Hamburger. Era um dos melhores cursos de atualização nefrológica. Fiz um curso muito bom e naquela ocasião pedi mais uma prorrogação de bolsa mas o Hamburger não tinha condição, então eu fui pro Hospital Hotel Deieu com o Professor Legrain que trabalhava com diálise. Ele era um cara mais animado e no fundo o estágio foi um pouco melhor.

Dr. Pasqual : Isso era em que ano?

Profa. Dinah: Isso foi em setembro de 62. Bom, naquela época, os hospitais na França eram muito diferentes. O Hospital Hotel Dieu era um hospital feito em 1100, gótico e era todo improvisado com cortinas como a gente tinha antigamente nas nossas Santa-Casas, certo, e os exames físicos dos pacientes eram feitos na frente de todo mundo, muito devassada, uma coisa incrível. Fazia toque retal, toque vaginal, tudo na frente de todo mundo, você entendeu? Era um hospital lindo, você olhava de fora, coisa maravilhosa; era um hospital que tinha uma unidade de diálise. O Legrain era um indivíduo que, naquela época, era de ponta na diálise. Era uma unidade com muita diálise peritoneal e pouco de hemodiálise. Com relação à hemodiálise, eu gostaria de dizer que vi nascer a hemodiálise no Brasil. Quando era residente, eu via o Tito carregar as panelas, porque ele fazia hemodiálise em panela, pelos corredores. Via o Tito, que foi um professor com relacionamento ético primoroso, uma pessoa maravilhosa dando os primeiros passos na implantação da hemodiálise.

Dr. Sebastião: Quanto tempo a senhora ficou na França?

Profa. Dinah: Eu fiquei 1 ano lá.  Naquela ápoca a nefrologia estava nascendo e não existia residência de nefrologia na USP. Só veio a existir vários anos depois. Acho que na Escola Paulista também não tinha residência em nefrologia. Então, a maior parte dos primeiros nefrologistas, eram clínicos que foram aprender nefrologia fora do país.

Dr. Sebastião: Nesse início não tem uma participação do Paraná?

Profa.Dinah: Também, com o Molinare. Foram eles que começaram e, em São Paulo, o Emil e o Marcelo Marcondes. Quando eu fiz residência só tinha de clínica geral na USP. Marcelo fez residência de clínica geral, depois foi fazer doutorado em nefrologia.  Não sei se o Oswaldo foi a mesma coisa… Eles eram clínicos e se trasnformaram em nefrologistas, geralmente a partir de um estágio fora.

Dra. Inah:: Nós somos companheira das mais antigas! Eu conheci a Dinah como lutadora sempre, em diferentes frentes na faculdade e fora dela. Nos separamos um pouco quando fomos fazer residência de segundo ano pois eu fui pra segunda médica, que era do Decourt, e ela foi pro Cintra, que era a primeira clínica médica. Eu me entusiasmei muito pela nefro porque eu tinha o Dr. Magaldi que foi considerado um pai da nefrologia brasileira. Ele conseguia mostrar a Nefrologia não só como uma especialidade, mas uma clínica de visão futura. Foi através desse convívio com o Dr. Magaldi e depois também com o Emil que veio de fora, que me entusiasmei pela Nefrologia e foi quando falei pra Dinah pra nós irmos pro Necker. A minha bolsa foi a primeira que saiu naquele ano, mas infelizmente ou felizmente não sei dizer aí, eu já estava casada e meu marido não quis ir. Ou eu ia sozinha ou eu desistia da bolsa. Até hoje uma das coisas que eu sinto, e muito, é que eu devia ter ido sozinha. Mas não fui.

Dr. Sebastião: Nenhum homem merece esse sacrifício! (protestando e iniciando um debate paralelo)

Dra. Inah: Eu  a acompanhei muito nesses tempos todos pois sou uma admiradora enorme da Dinah. Vocês são de muito menos tempo que eu e tem algumas coisas da Dinah que eu não entendi mesmo. Para Botucatu ela trouxe todo aquele cabedal de sentimento humano, que é enorme e que mais pontos conta na vida da Dinah. Ela é uma pessoa fabulosa do ponto de vista de amigo, de família e um ser humano fantástico. Mas a Dinah também é muito idealista e, dentro deste ideal, se envolveu e talvez ficou muito dentro dele. De repente, o que mais me intriga na Dinah foi ela ter se aposentado! Jamais me conformei com isso, já perguntei inúmeras vezes pra ela e nunca a Dinah conseguiu me convencer das razoes apontadas. Este negócio de dizer que precisa abrir, dar novas oportunidades…num departamento cujo espírito era tão democrático…Mas eu tenho duas perguntas assim objetivas: primeiro, se ela acha que atualmente a faculdade tem o mesmo pique que tinha anteriormente e segundo, se ela vê hoje  houvesse necessidade de abertura de uma nova faculdade, se seria possível encontrar gente, como houve na época, que foi criado Botucatu, pra fazer esta nova faculdade surgir com as mesmas condições de Botucatu?

Profa. Dinah: As coisas se modificam. O tempo modifica muito. Eu acho que as circunstâncias são diferentes, mas eu acredito que os seres humanos conservam em si mesmos essas potencialidades. O ser humano tem uma enorme potencialidade. Várias vezes, aqui na faculdade, quando eu era diretora ouvi dizer que o aluno não é mais a mesma coisa. Aluno tem que ter visto em outro contexto hoje, assim como o docente. Eu ouvia o pessoal dizendo: esses Centros Acadêmicos só fazem festinha. Mas bastou ter uma crise na Universidade e, de repente, o Conselho Universitário estava cercado de alunos de Botucatu, aqueles mesmos alunos que todo mundo dizia estarem só fazendo festinhas. Na verdade, o momento é muito complicado, e estamos inseridos numa cultura de individualismo, de procura de realização pessoal… mas, a essência está lá,a essência está aí, ela não deixou de existir. As pessoas que estão dentro da Faculdade  estão lutando, tenho certeza que estão lutando. Talvez um pouco mais individualistas, transitoriamente, mas têm condições de voltar a serem coletivas, de terem um projeto coletivo. Acho, por exemplo, que é escandaloso o BNDES dar um bilhão e trezentos reais para Ford se implantar! Isso é um escândalo! Quantas das nossas bibliotecas não recebem nenhum dinheiro para poderem subsistir? Só adquiriram qualidade depois de muito esforço das instituições.

Dra. Inah: O que você está falando é o privilégio de poucos em detrimento de muitos. Será que existiria uma Operação Andarilho por conta disso? Alguma escola hoje faria uma Operação Andarilho por conta da situação das suas bibliotecas ou de outras coisas necessárias?

Profa. Dinah: Olha, eu acho que faria! A história não para e não para porque o homem não para! Temos uma percepção equivocada, a medida que envelhecemos, de que o jovem não tem os mesmos ideais. Mas ele tem lá dentro do seu interior. Acho que a geração que está aí precisa segurar a peteca para não ir para trás. Agora, só tentando segurar a peteca não vai, a juventude tem que avançar também. Tem que observar o princípio de que isso aqui eu não largo, isso aqui que eu já conquistei ou o que a geração anterior conquistou, não posso perder porque depois eu não recupero.

Dr. Sebastião: Professora eu queria voltar na senhora. Quantos irmãos?

Profa. Dinah: Cinco, nós somos seis.

Dr. Sebastião: Quantos médicos?

Profa. Dinah: Nenhum, só eu.

Dr. Sebastião: Os pais da senhora…

Profa. Dinah: Meu pai era fazendeiro, minha mãe era professora mas nunca exerceu a atividade de professora, só dona de casa.

Dr. Sebastião: A senhora quis ser médica desde criança?

Profa. Dinah: Desde. Nasci numa cidade muito pequenininha de Goiás, Buriti Alegre.

Dr. Sebastião: A senhora é goiana?(espantado)

Profa. Dinah: Sou goiana. Fica perto….

Dr. Sebastião: ….Perto de Uberlândia!

Profa. Dinah: Fica perto de Uberlândia. Nasci em Buriti Alegre e tinha um primo que era médico da cidade, A cidade tinha dois médicos um meio afastado e meu primo um médico novinho. Ele tinha chegado na cidade e eu perambulava com ele, me levava  com ele. Eu tinha 8, 9, 10 anos ele me levava. Ele foi a primeira pessoa que me falou em Claude Bernard, imagina, menina de 10 anos alguém falando nisso!. Ele era um absoluto apaixonado pela medicina, uma paixão absoluta. Acabei ficando encantada com a profissão e quis fazer isso. Vi tudo, desde parto até dar choque pra tratar depressão… naquele tempo faziam isso!

Dr. Sebastião: E a família incentivava?

Profa Dinah: A minha família sempre me deu o maior apoio. Eu sempre estudei fora de casa. Quando a minha família mudou pra Araçatuba, meu pai que era fazendeiro, praticamente fez o ciclo dos fazendeiros que chegaram até o noroeste do estado. Eles passaram por Barretos e depois se instalaram em Araçatuba. Na passagem ele já me deixou num colégio interno em São Paulo, porque não tinha escola em Araçatuba. Terminei minha formação do segundo grau no Colégio Sion, em São Paulo, e aí eu fiquei a vida inteira em São Paulo, praticamente.

Dr. Sebastião: A senhora ainda acredita que é possível um professor viver dignamente com dedicação exclusiva e tempo integral numa faculdade?

Profa. Dinah: Olha essa questão é muito importante. Acontece o seguinte: é dificil, principalmente, para quem tem família. Hoje eu me ponho na situação das pessoas que tem família e, se não tiver nenhum complemento, fica muito difícil a sobrevivência.  Se a gente pega unicamente o valor do salário de um professor federal ou de um professor estadual é meio complicado. Agora, o tempo integral para a Universidade é fundamental pois crescem o rendimento, o envolvimento e tudo isso é muito bom. E se voce estiver somente dedicando à Universidade você também poderá ter uma visão da realidade extra-muros se tiver um serviço bem implantado e conectado à comunidade. O tempo integral é muito importante! Aqui, na faculdade, foram encontradas alternativas. O tempo integral é suplementado com uma parcela do SUS pois ele está exercendo uma atividade médica, ele está prestando serviço. O excesso de atendimento que ele faz não pode ser contabilizado somente como atividade docente.

Dr. Sebastião: É sempre muito complicado explicar isso para as   outras áreas da Universidade…

Profa. Dinah: É preciso que eles entendam…O nosso regimento da universidade permite que os professores de outras áreas dem aulas em outras Faculdades,  agrônomo dê assessoria e ganhe por ela… A Universidade ainda não percebeu como ela pode multiplicar a sua capacidade em várias áreas. Sei disso porque fui do Conselho Universitário. Tem condições de multiplicar a eficácia em vários setores. Excetuando essa questão de vender serviço pro público isso eu sou totalmente contrária.

Dr. Sebastião: Como? Eu não entendi…

Profa. Dinah: Eu sou totalmente contrária, por exemplo, colocar doentes particulares dentro do hospital público, eu acho que disvirtua o Hospital!

Dr. Sebastião: Mas o Hospital das Clínicas em São Paulo tem uma experiência dessa há anos!

Profa. Dinah: Os procuradores do estado estão muito certos de brecar isto. A gente sabe como é a questão da apropriação do público pelas camadas mais privilegiadas da sociedade. Acontece fatalmente!  O hospital público é pra todos. Do  Antônio Ermínio de Moraes até ao bóia fria. Se o Antônio Hermínio de Moraes quiser ficar ele terá que se submeter as mesmas condições que o outro. Sei por experiência dessa Faculdade e por experiência pessoal que, mesmo sendo dificil é perfeitamente possível dar um atendimento médico de qualidade e dígno para todos num hospital público Universitário.

Dr. Sebastião: Eu estou vendo ali na estante Mafalda, do Quino, o que a senhora lê fora da medicina?

Profa. Dinah: A Mafalda é da Cecília, Príncipe Valente também é dela. Olha eu sou uma desorganizada com leitura. Leio tudo que passa na minha frente, até bula de remédio! Gosto muito de história, adoro história e gosto muito de sociologia. Leio muito…

Dr. Sebastião: Costuma ler a história  da versão oficial ou a investigativa?

Profa. Dinah: Leio tudo! O que vier… eu leio muito a história universal. Gostaria que Hobsbaum tivesse produzido 1000 livros porque eu nunca ia acabar de ler o Hobsbaum. Leio um pouquinho de teoria econômica, um pouco de história do Brasil, história contemporânea e literatura…

Dr. Sebastião: Estou vendo ali muitos discos de vinil, a senhora já aderiu ao CD?

Profa. Dinah: Aderi. Os CDs estão dentro dessas gavetinhas. (rindo)

Dr. Sebastião: Correto, mas a senhora ouve o que?

Profa. Dinah: Eu ouço muito música popular brasileira em geral, instrumental e música clássica também. Gosto muito dos barrocos.

Dr. Sebastião: Uma moda de viola nem pensar?

Profa. Dinah: Ah…. eu gosto do Renato Teixeira, viu? Gosto muito e acho ele ótimo. Tem também o Almir Sater

Dr. Sebastião: Sertanojo não? ( NR: A palavra Sertanojo foi soprada pela Profa Cecília, ao lado)

Profa. Dinah: Não! (rindo)

Dr. Sebastião: Lá em Minas Gerais a gente adora essas coisas

Profa. Dinah: Almir Sater e Renato Teixeira eu gosto muito, eu acho lindas as músicas do Renato Teixeira. É uma riqueza!

Dra. Fernanda: Várias vezes a senhora foi homenageada pelo alunos como patrona, paraninfa… Por outro lado a senhora montou pela primeira vez no Brasil um modelo de glomeronefrite nefrotóxica em animais experimentais. Eu queria saber, em termos de retorno emocional,  qual foi mais importante pra senhora: a pesquisa ou o ensino?

Profa. Dinah: A gente está inserida numa Faculdade que pressupõe transmissão e a geração de conhecimento, são as duas coisas fundamentais! São altamente imbricadas, não se excluem e são altamente relacionadas. Quando um aluno te encosta na parede é maravilhoso, maravilhoso! O aluno é como criança… é sempre surpreendente! Ele vê aspectos que você não enxergou, te estimula e te provoca. O aluno é essência da atividade da gente, altamente compensador!  A pesquisa também foi compensadora porque é muito bonita, se inserindo em tudo, procurando o motivo, as razões…. Aprendi a fazer soro lá em Ribeirão e lá, eles não estudavam glomeronefrite,  e sim a lesão pulmona. Devo dizer para você que fui a primeira pessoa  a fazer o conjugado para estudar imunofluorescência nas minhas glomeronefrites… pra poder aprender, tive que fazer isso.  Achava, naquela época, que grandes partes das glomeronefrites eram auto imunes e teriamos que procurar essa auto imunidade nas várias glomeronefrites. Existiam trabalhos interessantíssimos e aí eu fui pra Ribeirão Preto. Aprendi um pouco do método, vim pra cá e aqui tinha uma estrutura de anatomia patológica consistente. Dava para tentar iniciar. Conseguimos montar, Marcelo Fabiano de Franco e eu  um método pra pesquisar anti-corpo anti-membrana basal glomerular e fui estudar a glomeronefrite que esse anti-corpo provocava. Nesta época não conseguia que os benditos dos serralheiros de Botucatu fizessem uma gaiola metabólica. Aí veio o Akioshi,aluno com tempo suficiente para ir no serralheiro todo dia! Os primeiros experimentos foram construidos graças a uma partilha impressionante. Atualmente nós temos uma estrutura muito melhor,   talvez a gente tenha em termos de Brasil, uma das estruturas melhores de pesquisa, mas até hoje ainda enfrentamos problemas. Gostaria de lembrar, Fernanda, que procurávamos aproveitar todo tipo de oportunidade que o ambiente da Faculdade propiciava. Estava muito claro que, durante algum tempo, não teríamos condições de fazer pesquisa clínica com profundidade mas havia necessidade de implantá-la para que o método científico fosse sendo incorporado. Mas, mesmo no início, conseguimos fazer propostas até certo ponto inovadoras, como a dieta de Giovanetti modificada, a “dieta de Botucatu” Como eu já disse, a opção de investir na pesquisa experimental foi imediata pela sua fundamental importância e também porque era a única que, usando os recursos dos laboratórios já existentes do departamento, da biofísica, da imunologia e da anatomia patológica, poderia ser realizada com rigor científico e se aproximar do que era realizada nos laboratórios de ponta e por fim, a motivação não faltava. O estudo das glomerulonefrites era e continua sendo um grande desafio intelectual e científico. Deu certo, já os dois primeiros trabalhos sobre o método montado e sobre nefrite nefrotóxica foram publicados e o segundo premiado nos congressos nacional e latinoamericano  e pela Academia Nacional de Medicina. As características da cidade e a cooperação da Medicina Preventiva levaram-nos a realizar pesquisas epidemiológicas na área de hipertensão, sendo os trabalhos de campo realizados por alunos coordenados por um deles, o Renato e supervisionados pelo Chico, e os exames clínicos realizados por toda a disciplina. E todos vocês, Fernanda, paulatinamente, foram ampliando, aprofundando, descobrindo suas linhas preferenciais, montando métodos, criando áreas e refinando a pesquisa. É isso aí!

Dra. Fernanda: Quantas vezes a senhora foi homenageada, quantas vezes a senhora foi patrona e paraninfa?

Profa. Dinah: Entre patrono e paraninfa eu acho que fui umas dez vezes e homenageada umas….

Todos completam na hora: Cem!!!!

Dr. Sebastião: Eu estou aqui do lado da senhora e toda vez que se refere à Faculdade, sinto um entusiasmo e seus olhos enchem de lágrimas… essa emoção acompanha a senhora em tudo?

Profa. Dinah: Eu acho que a Faculdade é a expressão de um país que cresce, que tem ideal, de um país que é muito bom mas que é desmerecido… A Faculdade é um pedacinho desse país… (emocionada)

Dr. Sebastião: Apesar de todos os problemas…

Profa. Dinah: É, com todos os problemas e com essa gente maravilhosa que faz as coisas acontecerem, apesar das dificuldades.

Dra. Cecilia: A Dinah agora faz parte da ação da cidadania de Botucatu. Eu sou Cecília, companheira, colega e moro com ela há quase trinta anos. (NR: se identificando, após solicitação) Agora, como ela está aposentada, se inseriu na ação da cidadania de Botucatu e tem algumas coisas que ela gosta de fazer nesta atividade. A Dinah é a intelectual da ação da cidadania. Mas tem certas atividades que ela não gosta de fazer, por exemplo:  vender bingo, vender cartela para arrecadar fundos! (Todos riem)

Dr. Sebastião: Tudo menos isso!

Dra. Cecilia. É. Agora ela gosta de opinar, e sempre dá opiniões interessantes, tem uma queda para ser tesoureira nos eventos…ela é caixa e fica vendendo nos eventos. Nos dias 25 e 26, na festa junina da Associação dos Servidores da UNESP, ela vendeu as cartelas das pizzas que nós estávamos fazendo, (gargalhadas gerais) Ela se solidariza muito, acompanha tudo o que ação da cidadania faz, embora ela se considere não muito atuante, mas eu acho que ela dá um bruto respaldo de criatividades, de idéias muito interessantes…. é isso que eu queria falar!

Dr. Sebastião: Nós precisamos encerrar, a entrevista já está longa e eu vou precisar editar bastante….

Dr. Franco: Eu gostaria de prestar um depoimento do porquê escolhemos fazer Nefrologia. Eu, como aluno e depois como residente, escolhi fazer Nefrologia, fazer carreira docente, por causa realmente da Dinah e pela oportunidade que ela dá às pessoas que estão ao seu redor, de crescer e de ter a liberdade de crescer!  Fui muito mais seduzido pela pessoa da Dinah do que propriamente pela disciplina ou pela especialidade em si.

Dra. Jaqueline: Eu queria que você falasse de uma saudade que você tem ao longo de sua vida e de seus planos para o ano 2000.

Profa. Dinah: Você queria que eu falasse de uma saudade pessoal ou de uma saudade institucional? Saudade pessoal eu tenho uma enorme dos meus pais. Só quem perdeu os pais é que sabe, pois fica uma coisa que não cicatriza nunca…. E saudade institucional eu tenho do tempo em que eu vivia 24 horas com vocês. Essa também é uma saudade também dificílima de cicatrizar viu? Quer dizer, a gente tenta, põe uns bandaids mas não cura.

Dr. Sebastião: Professora, vou fazer uma pergunta e fotografa-la ao mesmo tempo. Na resposta a senhora tem que dar um sorriso! É bom ser fazendeira?

Profa. Dinah: Quebrada é péssimo!. Quebrada é horroroso!! (gargalhadas gerais)

Dr. Haberman: É por tudo isso que a disciplina se sente muito honrada. Todos nós temos o maior respeito por toda essa luta que você fez, formando, fundando esta disciplina de nefrologia, belíssima disciplina, que hoje o Sebastião, aqui conosco, possibilitou mais uma vez permitir ouvir o seu coração de uma maneira tão bela. Acho que foi a principal reunião da disciplina de nefrologia de toda a sua história, desde 1970.

Profa. Dinah: Obrigada. (muito emocionada)

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